Pensamentos confusos de uma bibliotecária, um misto de informação, cultura e confissões da vida de uma profissional de 36 anos.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006
*Babel bibliotecária*
MANUEL QUINTANA CASTILLO
10. El Bibliotecario de Babel
1999 | Acrilico, case�na y polímeros sobre tela | 155 x 155 cms.
Disponível em http://www.galeriamuci.com/ exposiciones/mqc/9.htm
No princípio Deus criou o bibliotecário. Disse Deus: "funda bibliotecas por todo o mundo, seleciona os documentos de melhor qualidade, organiza a informação, presta serviços de excelência e vela pelo interesse dos usuários. Mantém atualizado o catálogo e confortável a sala de leitura, porém não escutes a Voz das Trevas, porque se o fizeres te confundirás
e desaparecerás como profissional".
O bibliotecário fez tudo quanto Deus lhe pediu. Ergueu bibliotecas em belos edifícios e nelas colocou todo tipo de documento criado pelo homem para registrar a informação: tabuletas de argila, rolos de papiro ou pergaminho,
tábuas de pergaminho ou papel, livros, revistas, diários e boletins impressos e toda a gama de documentos iconográficos, audiovisuais, tridimensionais e legíveis por computador, incluindo aqueles disponíveis na Internet. Inventou e reinventou o catálogo (e com ele a recuperação da informação), que evoluiu desde as antigas bibliotecas sumárias até as
bibliotecas ciberespaciais. O mesmo sucedeu com múltiplas ferramentas e métodos de trabalho: normas de catalogação, sistemas de classificação, vocabulários controlados, a análise por facetas e a indexação pré e pós-coordenada, o serviço de referência e o de circulação, incluindo o empréstimo interbibliotecário e a comutação bibliográfica. Capacitou as
pessoas em todo o necessário para acessar a informação. Adotou normas de qualidade e definiu indicadores de desempenho específicos para as bibliotecas, com o fim de avaliar e melhorar seus processos, produtos e serviços. Para tudo ele utilizou a tecnologia de ponta disponível em cada época e em cada lugar, desde a punção requerida para a escrita cuneiforme
até o computador e as telecomunicações do século XXI. Ergueu sua voz contra a censura e em defesa do direito de todos à informação. Elevou sua carreira aos mais altos níveis universitários, convertendo-a em uma profissão útil, nobre e digna.
Entretanto numa manhã, enquanto o bibliotecário realizava suas tarefas habituais, ouviu uma voz rouca e tenebrosa que lhe chamava: "Vem, aproxima-te". O bibliotecário voltou a cabeça e percebeu entre incrédulo e surpreso, a visão de uma árvore seca e retorcida, de negro tronco e negros ramos. A voz insistiu: "Vem, aproxima-te".
Temeroso, mas cheio de curiosidade, o bibliotecário se aproximou com precaução. Uma sensação sobrenatural se apoderou dele e o negro manto da noite cobriu o local, em pleno dia.
"Vem, aproxima-te, não tenhas medo" - voltou a escutar.
"É a Voz das Trevas?" - perguntou o bibliotecário com ingenuidade. "Deus me recomendou que não te escute".
"Não digas bobagens; dialoguemos e verais que esta conversa te interessa" - disse a Voz.
O bibliotecário se aproximou da estranha planta, o suficiente para ver as víboras que se arrastando pelo solo começavam a enroscar-se no tronco.
"Quem é?" - perguntou intrigante a Víbora Primeira, mostrando sua venenosa língua de duas pontas.
"Sou o bibliotecário" - respondeu este com segurança.
"Ha, ha, ha!… Pobre… Em que mundo vive? Não sabes que agora te chamas documentalista?".
"Que estás dizendo?" - interveio a Víbora Segunda - "o correto é especialista da informação ou cientista da informação".
"Gestor de informação, querida, os outros termos já eram" - interrompeu a Víbora Terceira.
"Melhor em inglês, information manager" - opinou a Víbora Quarta - "e se for chefe: "chief information officer" ou "CIO".
"Eu prefiro gestor do conhecimento, knowledge manager ou chief knowledge officer" - ajuntou a Víbora Quinta com ares de sabe-tudo.
"Mas com esses títulos, ninguém vai saber quem eu sou e o que faço".- protestou o bibliotecário".
"Precisamente, disso que se trata" - informou-lhe a Víbora Sexta - "todo mundo se perguntará o que é que faz essa pessoa, e como ninguém gosta de passar por ignorante, limitar-se-ão a dizer… Ahhh! Que interessante!".
"Bibliotecário!" - debochou com desprezo a Víbora Sétima - "Não existes! Desapareceste com o meteoro que extinguiu os dinossauros!".
Ressoavam ainda em sua mente as risadas de zombaria dos répteis interlocutores, quando o bibliotecário se deu conta de que, repentinamente, a visão havia desaparecido. Invadido pelo temor, se ocultou entre as estantes do depósito. Dali escutou a voz de Deus que lhe chamava:
"Bibliotecáááááaáááário, onde estás?… Que fazes aí?… Por que te escondes?".
"Porque me dá vergonha que me vejam nesta profissão de idiota que tenho" - respondeu o bibliotecário, sem atrever-se a levantar a cabeça do solo.
"Quem te fez pensar que é uma profissão de idiota? Acaso prestaste atenção á Voz das Trevas?" - perguntou Deus.
"As víboras me chamaram com insistência e não pude evitar…" - murmurou covardemente.
Então, Deus se enfureceu com o bibliotecário e pronunciou seu severo castigo:
"Por haver escutado a Voz das Trevas viverás para sempre na confusão e falta de identidade. Tirar-te-ão a Direção da Biblioteca que será ocupada por outros profissionais, ainda que não saibam nada a respeito, enquanto o público será atendido por um empregado administrativo que ganhará mais que tu. Tu te ocuparás dos processos técnicos, e todos te farão sentir que "somente serves para fazer fichas". Quando solicitares um ajudante catalogador, te enviarão pessoal de baixa qualificação, em tratamento psiquiátrico, e nunca te comprarão um tesauro atualizado. Em média, ganharás
um salário de fome e nunca conseguirás um estatuto profissional que te proteja".
"Qualquer um virá e te dirá: "não se diz usuário, e sim, cliente" e tu o repetirás como um papagaio, ainda que tenhas deixado a vida para satisfazer ao usuário. Ou te dirão: "o paradigma da biblioteca não é a conservação mas o acesso" e tu te impressionarás com a frase, embora tenhas passado séculos facilitando o acesso. Teu lugar de trabalho será chamado centro de documentação, centro de materiais didáticos, centro de informação ou centro de gestão do conhecimento, e quando a confusão entre todas estas organizações - que no final fazem a mesma coisa – for incontrolável, então as chamarás unidades de informação ou UI. E é claro, a sociedade não será capaz de diferenciá-las e continuarão chamando-as biblioteca".
"Víboras nacionais e estrangeiras proporão cursos inúteis nos quais aprenderás apenas que catalogação se chama agora representação descritiva ou descrição bibliográfica e que a classificação passou a ser organização do conhecimento; termos desconhecidos para coisas que tu mesmo inventaste.
Além de ser confundido, pagarás estes cursos a preço de ouro e sairás deles sabendo o mesmo que sabias antes de inscrever-te".
"Porei inimizade entre os bibliotecários universitários e os de bibliotecas públicas e farei proliferar os cursos de Biblioteconomia de 1 a 5 anos, onde todos levarão aos mesmos cargos e salários, assim permanecerão eternamente divididos e frustrados. Jamais conseguirás estar de acordo com outro bibliotecário".
"Até que chegue o dia em que avalies seriamente tua profissão e tua própria terminologia, avalies a ti mesmo e aos numerosos bibliotecários que têm oferecido sua criativa contribuição para que, durante milênios, os seres humanos tenham podido acessar a informação. Então, se assim o fizeres e compreenderes, eu te perdoarei".
Tradução para português por *Maria das Mercês Apóstolo*. Revisão por *Marcelo Silveira.*
Este texto é anônimo e foi lançado na Rede em espanhol por *Ana María Martínez Tamayo.*
Disponível em: http://br.groups.yahoo.com/group/indexbr/
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